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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O papa e um ateu

Paolo Flores d’ Arcais, e Joseph Ratzinger (quando ainda era cardeal).


Ratzinger defende que valores como a tolerância, a dignidade humana e o respeito à Razão só podem ser absolutos se admitirmos a existência de Deus. Paolo Flores d’Arcais se complica nessa hora.

...em muitas sociedades primitivas –também eles eram homens!—o canibalismo ritual era considerado um dever ético-religioso... De modo que, se por natureza entendermos o que normalmente se entende, ou seja, todos os que pertencem à espécie Homo sapiens, com certeza não existe nem uma única norma que tenha sido compartilhada sempre por todos os homens.

(...) Se nós estabelecermos a priori que uma parte da humanidade era contra natura e a outra parte –que coincidência, aquela que compartilha nossas normas--, essa era a verdadeira humanidade, é evidente que realizaremos uma operação que todo mundo pode fazer, com seus valores, mas cuja conseqüência é dizer que quem não compartilhou ou compartilha desses valores, não só peca, como também está fora da humanidade: essa é a conseqüência lógica.

(...) Pois bem, e se aqui, presentes [neste teatro], houver pessoas que consideram que –por mais doloroso que seja, e, evidentemente, sem que deva ser utilizado como método contraceptivo qualquer –o aborto não é, porém, um delito? Serão, por isso, pessoas irracionais, anti-humanas?

Ratzinger responde citando uma encíclica de João Paulo 2º.:

“Há coisas sobre as quais uma maioria não pode decidir, porque estão em jogo valores que não estão à disposição de maiorias variáveis; há coisas em que acaba o direito de decidir da maioria, porque se trata do humanismo, do respeito do ser humano como tal”.

Que confusão! Em primeiro lugar, noto certa hipocrisia no argumento de Flores d’Arcais. Para muita gente, o aborto pode trazer dor psicológica, mas em última análise, se for para considerar que estamos retirando do útero apenas um grupo de células indiferenciadas, a rigor se trata de um método anticoncepcional qualquer, e não haveria nada de doloroso, exceto imaginariamente, em sua adoção. Pode ser chocante, e em todo caso não sou mulher, mas essa é a minha atitude, aliás.

Em segundo lugar, é um pouco estranho o veto de João Paulo ao direito de decisão da maioria. A maioria, infelizmente, pode decidir pelo pior; será genocida, assassina e pecadora, mas não há nisso uma conseqüência do “livre arbítrio” que o catolicismo nunca quis negar? Ratzinger prossegue:

Não estou de acordo com o argumento “histórico”, que diz que para todos os valores existe, na história, também uma posição contrária (...) esse fato estatístico demonstra o problema da história humana e da falibilidade humana.

Paolo Flores d’Arcais responde, algumas páginas depois.

Eu compartilho inteiramente da ideia de que a maioria não é suficiente para decidir qualquer coisa (...) Não é coincidência que as democracias modernas estejam fundamentadas em Constituições que estabelecem limites a qualquer maioria para decidir o que quiser.

O mediador do debate, Gad Lerner, intervém:

Por exemplo, se uma maioria quisesse restabelecer a pena de morte na Itália, considera que isso seria lícito?

Flores d’Arcais responde:

Nossa Constituição diz que não; naturalmente, seria necessário primeiro mudar a Constituição, os mecanismos de reforma da Constituição e depois... no estado atual, a norma fundamental de nossa convivência...

O debate continua, mas não deixa de ser curioso ver um ateu se segurando, mal e mal, no texto sagrado da Constituição italiana.
Escrito por Marcelo Coelho às 01h36 ( blog uol)

obs: as opiniões explicitas neste texto não nescessáriamente são compartilhadas por este autor.

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