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domingo, 8 de novembro de 2015

Cristão pode comer carne de porco?


RECEBEMOS DE UM LEITOR cujo nome não estamos autorizados a divulgar, uma mensagem contendo a seguinte pergunta:

Se na biblia proibe comer a carne do porco, porque os católicos comem esse alimento? (...) A igreja católica não segue a Bíblia? Isso não é um pecado ?"

Em primeiro lugar, consideramos oportuno indicar a leitura de um artigo já publicado por nós e que trata especificamente da correta relação que deve haver entre o comportamento dos cristãos e a observância das Sagradas Escrituras que pode ser lido aqui.

A partir daí, podemos esclarecer diretamente a dúvida apresentada e dizer que não, não é pecado, comer carne de porco. Todavia, conhecemos a motivação de sua pergunta. 

No mundo judaico, – no qual, como cristãos, temos nossas raízes, – o tema da pureza é muito importante, e o porco era considerado um animal impuro. O fundamento bíblico se encontra no capítulo 11 de Levíticos, versículos 7 a 8: "Tereis como impuro o porco porque, apesar de ter o casco fendido, partido em duas unhas, não rumina. Não comereis da sua carne e nem tocareis o seu cadáver, e vós os tereis como impuros".

A questão que você apresenta foi também muito importante para os primeiros cristãos. De um lado, os judeus-cristãos pretendiam observar os preceitos que haviam aprendido em casa, de suas famílias que praticavam a religião judaica, e onde os preceitos descritos em Levítico eram observados. Do outro lado existia a pressão dos gentios, os convertidos que não eram judeus, vindos do mundo helênico, e que não queriam observar tais prescrições. O auge desse conflito é descrito em Atos dos Apóstolos (15), no Concílio de Jerusalém. Naquela ocasião o nó da discórdia era a circuncisão, que os de origem hebraica queriam impor aos gentios. O Concílio deliberou que aos gentios não fosse imposto nenhum peso “além destas coisas necessárias: que vos abstenhais das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas, e das uniões ilegítimas” (Atos 15,28-29).

O texto não menciona especificamente a carne de porco, mas o tema das regras de alimentação está implícito na discussão. Podemos, sem dúvida, tomar a conclusão dos Apóstolos reunidos em Jerusalém como alicerce do nosso julgamento quanto à ortodoxia na observância da Lei do Antigo Testamento, e assim o faz a Igreja.

Em outra passagem que é fundamental para o contexto em questão, como bem nos recorda o leitor Luis André Marques, no capítulo 10 dos Atos dos Apóstolos, o Senhor mostra a Pedro que nenhum animal é impuro:

No dia seguinte, enquanto estavam em viagem e se aproximavam da cidade, – pelo meio-dia, – Pedro subiu ao terraço da casa para fazer oração. Então, como sentisse fome, quis comer. Mas, enquanto lho preparavam, caiu em êxtase. Viu o céu aberto e descer uma coisa parecida com uma grande toalha que baixava do céu à terra, segura pelas quatro pontas. Nela havia de todos os quadrúpedes, dos répteis da terra e das aves do céu. Uma voz lhe falou: 'Levanta-te, Pedro! Mata e come'. Disse Pedro: 'De modo algum, Senhor, porque nunca comi coisa alguma profana e impura'. Esta voz lhe falou pela segunda vez: 'O que Deus purificou não chames tu de impuro'. Isto se repetiu três vezes e logo a toalha foi recolhida ao céu."
(At 10,9-16)

A. J. Jacobs
Poucas pessoas se preocupam com as prescrições da Lei de Moisés citadas no Antigo Estamento e que eram observadas pelos judeus: ora, a Lei proibia aparar a barba (Lv 19,27), usar roupas cujo tecido misturasse lã e linho (Lv 19,19), tocar mulheres no período menstrual (Lv 15,19) e misturar leite e carne numa mesma refeição (Lv 11,21), além de proibir o consumo do porco; isso sem mencionar as questões de compreensão realmente muito complexa para o homem comum do nosso tempo, como a obrigação de apedrejar os adúlteros (Lv 20,10) e os filhos desobedientes até a morte, fora das portas da cidade (Dt 21,18-21). Em 2011, o norte-americano A. J. Jacobs submeteu-se à curiosa experiência de tentar observar, "ao pé da letra", todas as prescrições do Antigo Testamento por um ano, e a registrou o seu cotidiano num livro no mínimo curioso, e por outro lado também bastante elucidativo.Saiba mais aqui.

Mesmo se concentrarmos a nossa atenção apenas na problemática das restrições alimentares, descobriremos que, junto com a carne de porco há muitos outros tipos de carnes proibidas: coelho, peixes sem escama e/ou barbatanas, o avestruz e todos os répteis. Se quiséssemos manter a fidelidade à letra da Lei, teríamos que observar a mesma preocupação que reservamos à carne suína para com os outros alimentos, e também, para seremos coerentes, às outras restrições dos tempos de Moisés. Provavelmente a questão da carne de porco, em particular, acaba ganhando maior importância porque também os muçulmanos, além dos judeus, não a podem comer. 

Para comprovar "biblicamente" (ao gosto protestante) que não há pecado em se consumir uma bom sanduíche de linguiça calabresa, além do texto dos Atos dos Apóstolos, poderíamos tomar o texto do Evangelho segundo S. Marcos:

E ele (Jesus) disse-lhes: 'Então, nem vós tendes inteligência? Não entendeis que tudo o que vem de fora, entrando no homem, não pode torná-lo impuro, porque nada disso entra no coração, mas no ventre, e daí sai para a fossa?'"
(Mc 7,18-19)

Impossível não apreender daí que o Senhor declara puros todos os alimentos. Evidentemente, essa perícope não alude exclusivamente às regras alimentares, mas nos dá uma inestimável base para refletirmos sobre a dimensão mais ampla, – espiritual, – de pureza e impureza, que tem a ver bem mais com santidade de vida do que com um conjunto de normas práticas sobre o que se pode ou não levar ao prato.

As leis alimentares e outras regras de comportamento veterotestamentárias têm sua origem na necessidade que a religião tinha de transmitir valores e linhas de conduta que ajudassem o bem estar geral e até a preservação das vidas dos seus seguidores. É óbvio que estes valores, com o tempo, adquiriram valores que ultrapassam esses elementos práticos/objetivos. A carne de porco, como bem sabemos hoje, é um alimento de delicado preparo e dificílimo de conservar num ambiente hostil como o deserto, – ainda mais dentro das condições sanitárias de séculos passados, como bem podemos imaginar. – Abolindo-se o seu uso, quantos e quão graves danos à saúde (consequentemente à própria sobrevivência) não foram evitados? Ainda hoje, mesmo que os animais criados para abate tenham passado a receber alimentação adequada e local limpo para crescerem e se reproduzirem, temos que ter cuidados muito especiais no preparo da carne de porco. Não há, entretanto, uma ligação direta entre esses cuidados a uma obrigação religiosa

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