No
Programa “Fantástico” da Rede Globo, de domingo 21 out 07, foi dito que
a Igreja aceitava a escravidão porque acreditava que os escravos não
tinham alma. Ora, isto não é verdade, pelo que mostraremos adiante.
A escravidão é tão antiga quanto o ser
humano. Em principio, estava associada às guerras em quase todos os
povos; os vencidos eram feitos escravos, na Grécia, em Roma, mas também
entre os incas e astecas do México antigo. O guerreiro vencido ser
tornava propriedade do vencedor. Entre muitos povos também se tornava
escravo do credor quem não pudesse pagar as suas dívidas, vendia a sua
pessoa ou os seus filhos e familiares ao credor. Na Grécia praticava-se o
rapto, especialmente de crianças, e as crianças abandonadas pelos pais
podiam ser recolhidas como escravos. No período áureo de Atenas, havia
na Grécia 15% de homens livres e 85% de escravos. Na Mesopotâmia havia
escravos de certo nível cultural, eram prisioneiros de guerra, como
muitos judeus deportados para a Babilônia no ano 570 a.C.. No Império
Romano, os escravos faziam trabalhos domésticos, e podiam ter funções
administrativas e burocráticas e até em altos cargos.Em
alguns lugares os escravos podiam trabalhar por conta própria, pagando
ao patrão uma parte do que ganhavam e juntar algum dinheiro para comprar
a sua liberdade. Nos séculos II-I a.C. em Roma a escravatura atingiu o
auge. Todas as atividades como agricultura, indústria, comércio,
construção civil e outras atividades da civilização antiga dependiam da
escravatura; sem isto nem a vida pública nem a doméstica se
sustentariam no Império Romano, pode-se dizer que a sociedade romana se
baseava sobre o trabalho escravo. Querer abolir a escravidão na
Antiguidade equivaleria a querer acabar com o trabalho assalariado de
nossos dias; a sociedade pararia de funcionar.
Isto explica porque o Cristianismo,
embora ensinasse a igualdade de todos os homens (cf. Gl 3,28; Rm 10, 12;
Cl 3,11; 1Cor 12, 13), não tenha podido e conseguido acabar de imediato
com a escravatura no Império Romano. É bom lembrar que a própria
Bíblia no Antigo Testamento, dentro do contexto da moral do tempo,
reconhecia a escravidão de estrangeiros (cf. Lv 25, 44-55).
Tudo isso constituía uma mentalidade de
peso, um forte traço da cultura da época. Note que entre certos povos a
escravidão existiu até o século XX; por exemplo, somente em 1962 foi
oficialmente abolida na Arábia Saudita. Um relatório apresentado em 1955
em sessão da ONU asseverava a existência de indícios de escravidão e
práticas semelhantes ainda em determinadas regiões, como a península
arábica, o Sudeste asiático, a África e a América do Seul. Recentemente
espalharam-se notícias de que o Sudão (África) tem plena vigência a
escravatura.
O Apóstolo São Paulo dava instruções a
senhores e escravos a fim de que convivessem em harmonia. (cf; Ef 6,
5-9; Cl 3, 22-41; 1Cor 7, 21-23; Tt 2,9s); o escravo Onésimo, fugitivo
do seu senhor Filemon, e depois batizado por São Paulo, foi devolvido
pelo Apóstolo a seu patrão com uma Carta, que pedia desse um tratamento
fraterno para o escravo cristão. Nas palavras de São Paulo a Filemon se
vê com facilidade que ele amava o escravo como um ser humano, e não como
alguém que não tivesse alma; e isto já por volta do ano 50.
O Concílio de Nicéia (ano 325), o primeiro que a Igreja realizou, afirma que escravos haviam sido admitidos ao sacerdócio.
O Papa S. Calisto, do ano 217, por
exemplo, foi um escravo liberto. Ora, como a Igreja poderia ter
acreditado, então, que o escravo não tinha alma? Muitos fatos históricos
mostram que a Igreja sempre defendeu e protegeu os escravos,
exatamente por ver neles filhos de Deus dotados de alma imortal.
Existia na Igreja a Ordem da SS.
Trindade, desde 1198, e a dos Mercedários ou Nolascos desde 1222,
destinadas a redimir os cativos detidos pelos Sarracenos. (cf. História
de Portugal, vol. IV, Damião Peres (Dir.) Barcellos, Portucalense
Editora 1932, p. 565).
Por acaso São Benedito (1526-1589), o
santo negro, o Mouro, não foi descendente de escravos? Como a Igreja
poderia canonizar um santo negro se não acreditasse que ele tem alma?
Em uma Carta do Papa João VIII, datada de
setembro de 873 e dirigida aos Príncipes da Sardenha, ele diz:“Há uma
coisa a respeito da qual desejamos admoestar-vos em tom paterno; se não
vos emendardes, cometereis grande pecado, e, em vez do lucro que
esperais, vereis multiplicadas as vossas desgraças. Com efeito; por
instituição dos gregos, muitos homens feitos cativos pelos pagãos são
vendidos nas vossas terras e comprados por vossos cidadãos, que os
mantêm em servidão. Ora consta ser piedoso e santo, como convém a
cristãos, que, uma vez comprados, esses escravos sejam postos em
liberdade por amor a Cristo; a quem assim proceda, a recompensa será
dada não pelos homens, mas pelo mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo. Por
isto exortamo-vos e com paterno amor vos mandamos que compreis dos
pagãos alguns cativos e os deixeis partir para o bem de vossas almas”
(Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio dos Símbolos e Definições nº 668).
O Papa Pio II, em 7 de outubro de 1462, condenou o comércio de escravos como magnum scelus (grande crime).
O Papa Pio VII (1800-1823) enviou uma
Carta ao Imperador Napoleão Bonaparte da França, em protesto contra os
maus tratos a homens vendidos como animais, onde dizia: “Proibimos a
todo eclesiástico ou leigo apoiar como legítimo, sob qualquer pretexto,
este comércio de negros ou pregar ou ensinar em público ou em
particular, de qualquer forma, algo contrário a esta Carta Apostólica”
(citado por L. Conti, “A Igreja Católica e o Tráfico Negreiro”, em ‘O Tráfico dos Escravos Negros nos séculos XV-XIX”. Lisboa 1979, p. 337).
O mesmo Sumo Pontífice se dirigiu a D.
João VI de Portugal nos seguintes termos:“Dirigimos este ofício paterno à
Vossa Majestade, cuja boa vontade nos é planamente conhecida, e de
coração a exortamos e solicitamos no Senhor, para que, conforme o
conselho de sua prudência, não poupe esforços para que… o vergonhoso
comércio de negros seja extirpado para o bem da religião e do gênero
humano”.Pio VII também muito se empenhou para que no Congresso
Internacional de Viena (1814-15) a instituição da escravatura fosse
condenada e abolida
O famoso bispo de Chiapa, na América,
Frei Bartolomeu de las Casas (1474-1566), levantou-se em defesa dos
índios contra sua escravidão. No início do século XVI o dominicano
Domingos de Minaja viajou da América Espanhola a Roma, a fim de relatar
ao Papa Paulo III (1534-1549) os abusos ocorrentes com relação aos
índios. Em conseqüência, o Pontífice escreveu a Bula “Veritas Ipsa”
(1537), onde condena a escravidão:“O comum inimigo do gênero humano, que
sempre se opõe as boas obras para que pereçam, inventou um modo, nunca
dantes ouvido, para estorvar que a Palavra de Deus não se pregasse as
gentes, nem elas se salvassem. Para
isso moveu alguns ministros seus que, desejosos de satisfazer as suas
cobiças, presumem afirmar a cada passo que os índios das partes
ocidentais e meridionais e as mais gentes que nestes nossos tempos tem
chegado à nossa notícia, hão de ser tratados e reduzidos a nosso serviço
como animais brutos, a título de que são inábeis para a Fé católica, e,
com pretexto de que são incapazes de recebe-la, os põem em dura
servidão em que têm suas bestas, apenas é tão grande como aquela com que
afligem a esta gente. Pelo teor das presentes determinamos e declaramos
que os ditos índios a todas as mais gentes que aqui em diante vierem a
noticia dos cristãos, ainda que estejam fora da fé cristã, não estão
privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus
bens, e não devem ser reduzidos a servidão”.
Neste texto merece atenção especial a
menção de índios e “das mais gentes”, que são os africanos. A uns e
outros Paulo III quer defender. Por isto acrescenta:“Pelo teor das
presentes determinamos e declaramos que os ditos índios e todas as mais
gentes que daqui em diante vierem à notícia dos cristãos, ainda que
estejam fora da fé cristã, não estão privados, nem devem sê-lo, de sua
liberdade, nem do domínio de seus bens, e não devem ser reduzidos à
servidão”.
Essa Bula de Paulo III teve grande
efeito, tanto assim que a 30 de julho de 1609 El-Rey promulgou lei que
abolia por completo a escravidão indígena: “Declaro todos os gentios
daquelas partes do Brasil por livres, conforme o direito e seu
nascimento natural, assim os que já foram batizados e reduzidos a nossa
Santa fé católica, como os que ainda servirem como gentios, conforme a
pessoas livres como são”.
Aos 24.4.1639 o Papa Urbano VIII
(1623-1644) publicou o Breve “Commissum Nobis”, incutindo a liberdade
dos índios da América. No seu Breve, o Papa ordenava, sob pena de
excomunhão reservada ao Pontífice, que ninguém prendesse, vendesse,
trocasse, doasse ou tratasse como cativos os índios da terra. Dispunha
ainda que a ninguém seria lícito ensinar ou apregoar o aprisionamento
dos mesmos. Por causa disso, revoltaram-se os colonos no Rio de Janeiro,
em São Paulo, em Santos e no Maranhão. Os Jesuítas foram perseguidos, sendo expulsos de São Paulo, Santos e do Maranhão, para onde só puderam voltar tempos depois.
em São Paulo, em Santos e no Maranhão. Os Jesuítas foram perseguidos, sendo expulsos de São Paulo, Santos e do Maranhão, para onde só puderam voltar tempos depois.
Por outro lado, o segundo bispo do
Brasil, D. Pedro Leitão (1559-1573), assinou aos 30.7.1566 na Bahia, com
o Governador Mem de Sá e o Ouvidor Dr. Brás Fragoso, uma junta em
defesa dos índios; defendia-os contra os abusos dos brancos e dava maior
apoio aos aldeamentos instaurados pelos jesuítas.
O famoso
Pe. Antônio Vieira (1608-1697), por vezes considerado como aliado dos
senhores da terra contra os escravos, na verdade assumiu posição de
censura aberta aos patrões. Disse ele:“Saibam
as pretos, e não duvidem, que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua… porque num
mesmo Espírito fomos batizados todos nós para sermos um mesmo corpo, ou
sejamos judeus ou gentios, ou servos ou livres” (Sermão XIV).
“Nas
outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem mulheres se
fazem os comércios: naquela (na África) o que geram os pais e o que
criam a seus peitos as mães, é o que se vende e compra. Oh! trato
desumano, em que a mercancia são homens! Oh! mercancia diabólica, em que
os interesses se tiram das almas alheias e as riscos são das próprias! “
(Sermão XXVII).
“Os
senhores poucos, e os escravos muitos, os senhores rompendo galas, os
escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo
à fome, os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de
ferros, os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e
temendo-os como deuses. /…/ Estes homens não são filhos do mesmo Adão e
da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com a sangue do mesmo
Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram
com a mesmo ar? Não os cobre o mesmo. céu? Não os aquenta o mesmo sol?
Que estrela é logo aquela que as domina, tão cruel?”. (Sermão XXVII
sobre o Rosário, in Sermões, vol 12, Porto, 1951, p.333-371)
Na Bula “Immensa Pastorum”, de 1741, o Papa Bento XIV (1740-1758) condenou a escravidão.
O Papa
Gregório XVI (1831-1846) em 3.12.1839 disse: “Admoestamos os fiéis para
que se abstenham do desumano tráfico dos negros ou de quaisquer outros
homens que sejam “.
O Papa Leão XIII (1878-1903), disse na Carta “In Plurimis”, em 5.5.1888 aos bispos do Brasil:“E
profundamente deplorável a miséria da escravidão a que desde muitos
séculos está sujeita uma parte não pequena da família humana”.
O papel da lgreja frente à escravatura
preparou a libertação dos escravos, assinada finalmente em 13/05/1888
pela Regente, Princesa Isabel. A fim de comemorar este evento, o Papa
Leão XIII enviou à Princesa a Rosa de Ouro, sinal de distinção e
benevolência de Sua Santidade.
Não fosse cansativo para os leitores
poderíamos ainda encher páginas e mais páginas mostrando o belo trabalho
da Igreja na defesa dos índios e dos negros. Mas creio que bastam os
fatos citados para desmentir o anunciado pelo Programa Fantástico.
Bibliografia utilizada neste artigo:
Revista “Pergunte e Responderemos”, Dom Estevão Bettencourt: N. 448/1999
– pg. 399-409; Nº 318 – Ano 1988 – Pág. 509; N. 267/1983, pp. 106-132;
N. 274/1984, pp. 240-247.
Terra, João Evangelista Martins, “A Igreja e o Negro no Brasil”. Ed. Loyola 1983.
Bíblia, Igreja e Escravidão. Coordenador João Evangelista Martins Terra S. J. Ed. Loyola 1983.
Carvalho, José Geraldo Vidigal, “A Escravidão. Convergências e Divergências”. Ed. Folha de Viçosa, 1988.
Carvalho, José Geraldo Vidigal, “A Igreja
e a Escravidão. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos”.
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, 1988.
Balmes, Jaime, “A Igreja Católica em face da Escravidão”, São Paulo 1988.
Prof. Felipe Aquino
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